A linguiça era um dos pratos típicos do Corvo. Carne com gordura moída dentro da tripa. Trabalho de mulheres. Quase só de mulheres também é a promessa de rezar o rosário todos os dias em honra de Nossa Senhora dos Milagres. Promessa que vem dos tempos em que Nossa Senhora, dizem, protegeu os habitantes do Corvo contra os piratas. Aqui poucos falam disso, dos piratas, como se fosse sinal de marginalidade. Mas não, será um dos grandes feitos deste povo, o ter resistido a ataques e ter feito trocas comerciais quando as necessidades assim o pediam. Se o poder central ignorou esta ilha durante séculos, os vizinhos, “amigos” e parceiros comerciais vinham do mar, dos párias sem nação. O Corvo poderia ser visto como um país à parte. Os naufrágios junto à costa, acidentais ou provocados por fogueiras em terra, sempre deram madeira reutilizada, mercadoria recuperada. O que o mar levava, o mar trazia. Milagres naturais. O rosário é agora rezado só por seis ou sete pessoas, já com idade. A gente nova não o continua. Tudo leva a crer que em breve a promessa será quebrada. O rosário do Corvo é um ritual religioso mas de carácter pagão. É uma evocação popular, um chamamento colectivo fora do âmbito da Igreja. Dura uma hora, organiza-se em círculos, tem uma voz e um coro. É um hipnotismo, é um transe xamânico do povo, em vias de extinção.
Gonçalo Tocha
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